“Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo.”
O trecho acima é do poema Apanhador de Desperdícios, criação do poeta Manoel de Barros (1916-2014). Ao lê-lo, lembro do meu quintal da infância. Lugar abarrotado de miudezas cotidianas, caminhos de formiga, botões sem casa, joaninhas, esconderijos secretos, amigos imaginários e caixas de brinquedo que encantavam mais que brinquedos novos, com manual. Era mesmo um quintal grande, cheio de silêncios e maior do que o mundo.
Nestes versos reconheço também que é esse espaço de contemplação, minha querida engrenagem ociosa e imprestável, que venho procurando resgatar, pois, com o tempo, meu quintal diminuiu. Sofreu uma espécie de desmatamento de subjetividades para dar lugar à monocultura funcional da vida adulta, que, na nossa sociedade, precisa dar e prestar conta de tudo, na velocidade de um míssil e sem espaço para atrasos do ser.
Meu coração agradece a você, Manoel de Barros, por sua visita nesta reportagem, por me lembrar que tolo é quem não reconhece o valor das “desimportâncias”, do brincar e daquilo que aprendemos a chamar “coisa de criança”. Porque é exatamente aí, nesse universo, que mora o impulso criativo, a centelha da curiosidade e do entusiasmo pela vida diária, e por quem se é, na essência. Uma fagulha que precisa urgentemente ser cultivada, como quando sopramos a brasa para a chama acender.
Construindo o imaginário
Para o psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott (1896–1971), a brasa, a comichão, está em nós já nos primeiros dias de vida. Ainda bem. Tem a ver com a expressão subjetiva da criança que, desde muito cedo, cria e manifesta o mundo que quer e precisa acessar. “Mas, para Winnicott, essa ilusão de onipotência, ou o gesto espontâneo, depende de um ambiente minimamente acolhedor, receptivo à subjetividade infantil”, diz o psicanalista, professor e escritor Alexandre Patricio de Almeida.
O lugar e as pessoas com quem vivemos constituem o sopro imprescindível ao fogareiro. “Imagine um bebê chorando de fome. Aí a figura do cuidador interpreta isso como sono, e o coloca para dormir. Aqui, houve a troca do gesto espontâneo pelo do ambiente, algo que acontece e é normal. Mas esse exemplo serve para ilustrar que, se esse tipo de troca se repete incisivamente, haverá a interrupção gradual do crescimento espontâneo, para dar lugar ao reativo, continuamente respondendo à realidade objetiva. Assim, com o tempo, enrijece-se, perde-se a espontaneidade criativa e, consequentemente, o entusiasmo”, explica Alexandre.
A importância de livrar-se das armaduras
Alguém se reconhecendo no processo? Quantos de nós vivemos boa parte da vida assim, reagindo a demandas de um contexto intruso, sem o cuidado de guardar um pedacinho que seja do nosso quintal de subjetividades? Bastante gente.
Quem diz é a psicanalista Márcia Malpelli, pós-graduada em gerontologia e saúde mental, e especialista no atendimento de pessoas na faixa dos 50 para cima. “Tenho recebido na clínica adultos que chegam a essa fase da vida fundados num lastro sufocante de abuso psíquico. Pessoas que ainda na infância ou adolescência se viram impelidas a assumir papéis ou responsabilidades emocionalmente estruturantes, como o cuidado com os pais, irmãos, com a casa ou a harmonia do lar”, diz.
Crianças arremessadas para fora da espontaneidade para dar conta de uma realidade objetiva, invasiva e pesada demais a uma juventude ainda imatura. “E, quando alcançam a meia-idade, quando filhos, pais, casa ou o trabalho já não demandam tanto, percebem-se perdidos, esvaziados de subjetividade, sem gesto espontâneo, não sabem do que gostam. Estão sem entusiasmo.” Ou sem a abundância de ser feliz, como escreveu o poeta.
Vestir a capa de herói
São, na essência, crianças na clínica buscando lançar fora a roupa apertada de provedor e guerreiro, que suporta tudo. “Uma fantasia sedutora, pois a sociedade tende a valorizar e romantizar o sofrimento. Mas que, na realidade, é uma falha narcisista, porque é quando se está frágil que se aceita vestir a capa de herói, uma identidade que o ambiente nos empurra para que possamos existir. Quando eu me visto de guerreiro, de provedor, eu existo, tenho função e sou reconhecido nela”, analisa Alexandre.
Segundo ele, a crise existencial vem justamente quando nos vemos fora desse lugar, e nada mais sobra. Quando nos damos conta de que o nosso entusiasmo sempre esteve mais conectado ao fazer e ao performar, a responder às demandas e urgências, do que ao ser.
Talvez, por isso, na teoria winnicottiana, o brincar (ou as coisas desimportantes) tem significado sério. Não se trata apenas de uma manifestação do inconsciente, mas, sim, de algo constitutivo, que sustenta nossa subjetividade. Sinônimo de viver criativamente, com curiosidade. “É no brincar, somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral. Somente sendo criativo o indivíduo descobre o seu eu (self)”, escreveu Winnicott na obra O Brincar e a Realidade (1975). E, podemos completar, entusiasma-se com ele.
Isso tem graça
Mas só brinca quem exercita a espontaneidade. E quem mais, além das crianças soltas em seus mundos imaginários, personifica tão bem esse gesto? O palhaço, sim, senhor! Ele exagera a espontaneidade, vai na maré contrária à lógica comum, porque se vale da falha, do fracasso, para fazer rir, entusiasmar e criar empatia. Temos muito a aprender com esse mestre.
“A linguagem da palhaçaria nos dá a preciosa chance de nos vermos como pessoas anti-heroicas e desimportantes. O nariz vermelho, oposto do guerreiro, nos convida à percepção do nosso corpo e das nossas reações espontâneas para, em vez de reprimi-las, reconhecê-las, acentuá-las e colocá-las no holofote, como instrumentos de comicidade, autenticidade, do riso e do humor, um portal para o entusiasmo. É uma celebração, uma brincadeira com a autoimagem, é se entusiasmar com quem se é, genuinamente”, diz Joana Barbosa, palhaça, pesquisadora acadêmica, psicóloga e cofundadora, ao lado do ator Paulo Candusso, da Casa 11, um espaço em São Paulo para a criação, acolhimento e transformação pessoal por meio da palhaçaria e do humor.
O resgate do gesto espontâneo
Para Joana, a veia lúdica, rir de si próprio, é como um músculo que precisa ser exercitado. E isso requer observação, autopercepção, contemplação e o resgate do gesto espontâneo e criativo. “Na palhaçaria, um copo não é só um copo, ele pode virar meu telefone de corda ou um megafone”, exemplifica Ana Luiza Bellacosta, palhaça, atriz e mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP).
Ana enfatiza que essa é uma arte relacional, que cria, sublima e interage com tudo; objetos, pessoas, plantas, animais, exercendo efeito direto sobre como cada um se percebe e se relaciona consigo e com o outro. “Isso ativa nosso senso de curiosidade, estabelece uma conexão mais profunda com a existência, nos faz autênticos, mais atentos e gratos ao presente, além de abertos a testar.”
Preservando o quintal da subjetividade
E o que é o entusiasmo, senão se surpreender a partir de novas vivências? “Quando a gente cresce, aquela ilusão de onipotência primária, se preservada, transforma-se na capacidade de acreditar. Em ter fé na gente para a vida. Em estar disponível para experimentar”, observa Alexandre. É claro que a proposta não é abstrairmos da realidade objetiva que a vida adulta nos impõe, e que, aliás, também pode ser fonte de entusiasmo.
Todos temos de responder a demandas externas, que nem sempre estarão em sintonia com nosso gesto espontâneo. Mas eu acredito na preservação do quintal de subjetividades. Por meio de escolhas cotidianas capazes de trazer mais leveza e gosto pela vida. Quem sabe tomar um caminho diferente para ir ao trabalho e topar com novas paisagens? Ou vestir aquela roupa preferida, mesmo que não haja uma ocasião especial para isso? Experimentar novos sabores, ler poesia, ir ao teatro, conhecer novas pessoas. Começar uma atividade e se contemplar em um contexto e lugar diferentes dos habituais.
Como defendeu Winnicott, o impulso criativo habita em nós desde sempre. E, mesmo em situações e ambientes onde o medo e o sofrimento são bem latentes, quase palpáveis, sobrevive feito braseiro. A palhaça Ana Luiza integra, entre tantos outros grupos, os Doutores da Alegria e tem o privilégio de testemunhar isso. “Muitas e muitas vezes deixamos o quarto do hospital ouvindo o lastro do riso quente, que fica lá, contaminando tudo.”
Fica a lição: não subestimemos a capacidade que as coisas singelas têm de nos encantar. À falta de ideias, busquemos sugestões na poesia de Manoel de Barros, homem do mato, dos rios, dos bichos de todos os tamanhos – dos caracóis às onças. Um especialista em alumbramentos: “Por que não voltar a ver as primeiras cores do amanhecer? Como não voltar para onde a invenção está virgem?”
Por Vanessa Costa – Revista Vida Simples
Jornalista, escritora e vem (re)aprendendo a ser palhaça.
Fonte: Jovem Pan Read More