Acho solidão uma palavra bonita, mas seria mentira dizer que sempre senti o mesmo quando o assunto é a construção de um relacionamento com ela. Como seres sociais, adoramos estar na companhia de outras pessoas. Se bem que, muitas vezes, elas servem como distração daquilo que não queremos olhar, seja sobre nós, seja sobre o mundo.
Estar sozinho, para muitos de nós, pode gerar desespero ou significar o fracasso de nossas relações. Mas, mesmo construindo elos diariamente, por impulso, necessidade ou simples prazer, no fim, estamos intrinsecamente sozinhos. Veja bem. Isso não é motivo para tristeza. Apenas há um pedaço de nós que nunca será tocado por ninguém, com o qual precisamos viver e aprender a lidar por nós mesmos.
“Amar a solidão e procurá-la não significa transportar-se de uma possibilidade geográfica a outra. O homem torna-se solitário no momento em que, seja qual for seu ambiente externo, toma, de repente, consciência de sua própria e inalienável solidão e compreende que jamais será outra coisa senão um solitário”, escreveu o monge trapista e teólogo Thomas Merton na obra Na Liberdade da Solidão (Vozes).
Eu me lembro de dar de cara com a solidão durante o meu intercâmbio. Sem dúvida, já havíamos nos encontrado outras vezes nos meus até então 20 anos de vida, mas, em 2016, ela se fez muito presente, como uma pedrinha pontiaguda no sapato. Passei alguns meses trabalhando nos Estados Unidos e os meus horários eram muito diferentes dos turnos dos meus amigos.
Lutar contra o inevitável é garantia de sofrimento em dobro. A gente sofre pela coisa em si e pelo fato de não poder mudá-la. Então, pensei: “Preciso aprender a me divertir sozinha”. Ali descobri que posso estar feliz sem ninguém por perto e o quanto isso suaviza a jornada, pois nos tira de um lugar de dependência, em que é preciso companhia o tempo todo para nos sentirmos bem. Naquela época, eu dava os primeiros passos em direção à solitude.
Únicos no mundo
Anos mais tarde, em minhas andanças online, esbarrei em uma frase de Clarice Lispector. Como não acredito em coincidências, sei que ela me encontrou na hora certa: “E ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão.”
As palavras de Clarice me estenderam o acolhimento de que eu precisava para aceitar que muito do que vivo e como vivo só vai ser parte de mim. Em outras palavras, há uma solidão enorme em ser quem somos. Ainda que estejamos rodeados de pessoas, que possamos contar com uma forte rede de apoio, no fim do dia, somos seres individuais. Isso significa que uma parte da experiência de estar viva neste plano pertence somente a mim e só eu terei acesso a ela. Essa é uma das coisas mais belas, frustrantes e assustadoras que já descobri sobre a vida.
De fato, não é possível que entendam exatamente o que se passa dentro de nós; as pessoas não habitam o mesmo corpo que a gente, território partilhado por nossa mente, coração e alma. Juntos, eles guardam e pulsam tudo o que somos. Assim também é com o outro: por mais íntimos que sejamos de alguém, precisamos aceitar que não o entenderemos por completo.
A solidão, portanto, não é uma escolha, mas algo intrínseco à natureza humana. Todos vamos inevitavelmente senti-la apenas por ser quem somos. Não há nenhum outro de nós neste mundo e há coisas que carregamos dentro da gente que são só nossas. Por mais que tentemos explicar, ultrapassa qualquer entendimento. É como se, ao falarmos em voz alta, aquilo já não tivesse o mesmo sabor que sentimos quando o pensamento ainda não escapou pela boca.
Quando entendemos que o outro pode chegar até certo ponto de nós, paramos de sentir tanta necessidade de nos explicar em detalhes. E foi exatamente o que eu fiz desde que li a frase de Clarice. Afinal, o outro é o outro; eu sou eu. O que nos leva a pensar também: o quanto estamos respeitando esse limite do que podemos acessar daqueles que amamos e com quem convivemos?
Encontro marcado
Em A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Paidós), livro da psicanalista, professora universitária e pesquisadora Ana Suy, amor e solidão são discutidos sob a perspectiva da psicanálise. A obra é um lembrete importante de como o encontro com o outro, no fim das contas, acaba se revelando mais um convite para aprendermos a estar presentes conosco, pois nossas relações sociais acabam nos mostrando muito do que somos e porque somos.
“Quando crianças, se crescemos com pessoas nos amando e nos cuidando, tendemos a acreditar que, apesar de não sabermos o que estamos fazendo no mundo, temos quem saiba por nós: pais, avós, irmãos mais velhos, tios… Confiamos muito nessas pessoas e achamos que elas são seres completos; e acreditamos que também o seremos um dia. É por isso que, geralmente, as crianças gostam de brincar de ser adultos”, afirma Ana.
Na adolescência, essa imagem, até então muito bem projetada, vai se desmanchando no ar. “Vamos perdendo a sensação de completude no outro e percebemos que os adultos não sabem tão bem o que estão fazendo; é quando nos deparamos com uma certa solidão, mas aquela solidão suportada, pois essa é uma fase em que temos muito suporte dos grupos aos quais começamos a pertencer. ‘Não sou igual à minha família, mas tem gente que me entende’”, prossegue a psicanalista.
A crueza se revela por completo na idade adulta, o que não tem a ver com idade, mas com a maturação psíquica de cada um. “Descobrimos que, na verdade, ninguém sabe como é ser quem somos. Essa noção de solidão é a que vai desembocar na liberdade. É a solidão que vai fazer com que a gente possa suportar que ninguém no mundo vai poder viver a vida que a gente vive ou saber como é estar dentro do nosso corpo”, ela explica.
É por isso que, em relacionamentos saudáveis, a solidão de cada um deve ter o seu espaço protegido para florescer. Como delineou o poeta austríaco Rainer Maria Rilke: “o amor é a união de duas solidões que se respeitam”. Descobrir formas mais gentis de acolher a nossa humanidade nos ajuda também a ter mais empatia pelo outro e mais respeito pela sua interioridade.
Se eu mesma não consigo e nem devo me desdobrar para ser compreendida por completo, o outro também não deveria precisar fazer isso por mim. Concorda? Ana Suy acrescenta: “Poder suportar que ninguém vai saber como é ser a gente pode ser um convite para experienciar a nossa solidão e aprender a suportar o outro com a solidão que é só dele. O lugar em nós que pode ser doído é o mesmo lugar que pode ter efeitos de liberdade”.
O que diz o silêncio
Contudo, perceber-se sozinho não é fácil. O silêncio se faz presente como nunca e o barulho que ele pode conter é, por mais paradoxal que pareça, ensurdecedor. É quando estamos apenas com nós mesmos que percebemos certos incômodos.
O autoconhecimento é um caminho poderoso para trilhar essa jornada com mais consciência e leveza. Ao identificarmos quais são os nossos valores e dissabores, entre outras questões, nos apossamos de quem somos e vamos em busca do melhor que a vida pode nos oferecer.
A solidão pode ser tormento ou prazer, tudo depende de como aprendemos a encarar a sua presença em nossas vidas. Aprendizados, como o formulado por Clarice Lispector, são daqueles que atravessam o nosso caminho para nos lembrar como a existência é vasta e, por vezes, intocável.
Ela pode e deve ser sentida, mas, tal qual a solidão, nem sempre ela nos oferece a dose de entendimento que gostaríamos; ela até propositalmente tira ele de nós, como uma provocação para abraçarmos o mistério que é estar aqui, todos juntos, trilhando jornadas individuais e, tomara, confiando na parte de nós à qual ninguém mais tem acesso.
Somos feitos de solidão
Deitada sobre o gelo, em plena invernagem na Groenlândia – tendo apenas a natureza congelada por companhia –, a navegadora Tamara Klink embrulhou sua solidão com palavras. “Enquanto procurarmos o amor no outro, faremos da solidão nossa rival. Veremos apenas o que ela tem de escuro: silêncio, sombras, vazio, imensidão, segredos, medo. Tentaremos combatê-la nos cercando de gente estranha, tentaremos esquecê-la enchendo os olhos de imagens, tentaremos explodi-la e explodiremos a nós mesmos. Porque somos feitos de solidão”, ela postou recentemente em sua rede social. Para Tamara, estar só é portal garantido para o prazer e a liberdade. Uma chave de ouro que não deveria ser posta em mãos alheias.
O monge Thomas Merton, por sua vez, deixou de ver a solidão como um problema quando percebeu que ela não poderia ser meramente subjetiva e interior, pois seus esforços de navegar por suas águas internas nunca bastariam. Era preciso ir além. “Ela tem de ser uma comunhão com algo maior que o mundo, grande como o próprio Ser, de maneira que, na profunda paz da solidão, encontremos Deus.”
Por Júlia Groppo – revista Vida Simples
Jornalista e escritora. Aprendeu a apreciar a solidão como uma viagem interna cheia de descobertas sobre a experiência de estar viva.
Fonte: Jovem Pan Read More